A esta altura do campeonato todo mundo já sabe que o Manchester City foi punido pela UEFA por descumprimento de regras do Fair Play Financeiro (FPFin). Então, vamos falar sobre um tema que usualmente é associado ao FPFin, que é a ideia de que o sistema de controle financeiro acaba gerando pouca mobilidade nas conquistas, preservando o status quo dos grandes clubes. Não é bem assim.
O Fair Play Financeiro nasceu com a ideia de que era preciso controlar os gastos dos clubes, levando-os ao equilíbrio e consequentemente à solidez financeira. Com isso visava garantir que o futebol fosse autossustentável, o que significa dizer que cada clube deveria viver dentro de suas possibilidades de geração de receitas, sem injeções infinitas de dinheiro de acionistas bilionários. “Fair Play” significa jogar limpo em todas as instâncias, dos atletas aos clubes adversários.
Quem questiona esse ponto diz que isso impede clubes que faturam uma fração dos gigantes possa competir em pé-de-igualdade com eles. Afinal, como a Fiorentina e seus € 100 milhões de receitas competem com a Juventus de € 460 milhões?
Partiremos então de uma questão numérica. A partir das 5 maiores ligas europeias (Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália) e adicionando outras duas bem conhecidas dos brasileiros (Holanda e Portugal), estamos falando de 134 clubes apenas nas divisões principais.
Considere então que está liberada a entrada e o aporte infinito de dinheiro nos clubes de futebol, podendo a partir de agora contratarem atletas e pagarem os salários que quiserem, mesmo com prejuízo, que seria coberto com aportes de recursos anuais dos acionistas. Por exemplo, o clube tem receitas de 100 e custos de 150, e todos os anos o dono aporta 50 para fechar a conta sem prejuízo.
Pergunta: teremos 134 bilionários interessados em fazer isso? Veremos interessados no Sparta Roterdã, no Gil Vicente, no Lecce, na mesma magnitude que se interessariam por Arsenal, Ajax, Milan e Atlético Madrid? Haveria dinheiro equivalente para todos, ou a maioria permaneceria à margem? Falamos umas contas: tomei o valor de receita de cada liga que consta no UEFA Benchmark de 2018. Separei a soma de receitas dos Top clubes de cada liga (sem igualá-las, fazendo soma simples). Com isso, encontrei a soma de receitas dos demais clubes, e chegamos à receita média por clube. Daí a conta é simples: média dos Top menos média dos demais. Com isso chegamos ao valor incremental de receita que cada clube deveria ter para se igualar aos que mais faturam.
Os números acima significam que na Espanha seria necessária uma injeção no primeiro ano de € 12 bilhões, considerando que a receita média dos clubes que não se chamam Real Madrid e Barcelona é de € 84 milhões anuais. Logo, o total de aporte para “equilibrar” o jogo seria de € 46,5 bilhões.
Mesmo que isso fosse possível, haveria um efeito inflacionário no futebol absurdo, sem contar que é impossível formar 134 equipes competitivas, mesmo que tivessem o mesmo dinheiro. Óbvio ululante.
“Ah, que absurdo! Não é para igualar todo mundo, e sim aumentar a competitividade”. O que as pessoas querem é apenas derrubar os grandes. Mesmo que este efeito ocorresse para 3 ou 4 clubes em cada liga, significaria apenas que haveria um abismo ainda maior, inviabilizando outros clubes de chegarem onde suas pernas alcançam, como disputar a Europa League, e eventualmente chegar à Champions League.
Isso, sem contar o efeito reverso de diminuir o impacto de boas gestões, como faz o Liverpool, o Tottenham, o Napoli, a Atalanta, o Borussia Dotmund, caso não fossem os novos Davis a derrubar os Golias do futebol.
Controlar movimentos de aportes ilimitados de recursos é uma forma de evitar um abismo ainda maior entre as equipes.
“Mas agora só os clubes grandes conquistarão”. Precisamos entender quando começa o “agora”. Veja na tabela abaixo a relação de vencedores das 5 maiores ligas europeias desde a temporada 89/90.
São 30 anos de competições e 150 campeões na tela. Apenas 18% das vezes (27 anos) o campeão não foi um dos grandes de cada país. Ainda assim, por 6 vezes tivemos repetições de campeões, ou seja, em 12 dos 27 anos. Campeões únicos foram 15 vezes, ou 10% da amostra.
Mesmo na década anterior (79/80 a 88/89) tivemos nos países 7 títulos conquistados por Liverpool e Arsenal, 6 títulos do Bayern Munich, 6 títulos de Real Madrid e Barcelona e 7 títulos do trio italiano. Apenas na França tivemos maior dispersão, e nenhum clube venceu mais que dois títulos.
“Ah, mas na década de 70…”. O futebol, a economia, o mundo era outro. Voltemos então ao período em que a bola era de capotão, as chuteiras de couro, os estádios não tinham assentos e a TV não se interessava por futebol.
A concentração sempre existiu e vem se acentuando ao longo do tempo, à medida em que os clubes se profissionalizam, buscam novas fontes de receitas, se conectam com torcedores globais e suas marcas valem mais. Não guarda relação com aspectos que apenas impedem donos de colocarem dinheiro por algum tempo, cansarem da brincadeira e desistirem, deixando o mercado completamente desregulado.
Se o Fair Play Financeiro tem algum sentido de proteção aos clubes grandes está mais relacionado à redução na chance de cair para as segundas divisões que lhes garantir a conquista dos títulos. Claramente um clube com grande receita tem enorme chance de títulos, mas sua chance de ser rebaixado é praticamente zero.
Ainda que se insista nessa tese, vamos a algumas informações. Primeiro, tomando 20 anos de listas de maiores receitas de clubes que é apresentada anualmente no relatório Deloitte Money League.
Note que desde 1998 o Top 10 de maiores receitas repete sempre 70% de sua formação. As mudanças ao longo do tempo estão ligadas à queda de Milan e Inter, por suas más gestões, enquanto chegaram ao grupo o PSG e o Manchester City, clubes comprados por bilionários. Na prática eles tomaram lugar de outros clubes, como Borussia Dortmund e Atlético Madrid, que poderiam estar na parte mais nobre do ranking. Ainda assim, nesse meio tempo o Atlético Madrid fez duas finais de Champions League e o Borussia fez uma, enquanto City e PSG tem ficado pelo caminho.
Volto então ao ponto inicial: é justo inflar o mercado e criar campeões artificiais, enquanto clubes que evoluem dentro de suas possibilidades perdem competitividade?
Na história, um aspecto mais concentrador foi a chamada Lei Bosman, que aboliu a ideia de “passe” na Europa, bem como permitiu livre trânsito de atletas comunitários entre os países da União Europeia. Este movimento propiciou a criação de grandes “seleções mundiais”, oportunidade aproveitada por quem tinha mais dinheiro. Note no gráfico abaixo que há 6 clubes que concentram praticamente 60% de participação em finais de Champions League desde a Lei Bosman.
No gráfico abaixo temos uma visão de mais longo prazo. É possível observar a mudança na origem dos países que tem clubes disputando a final da competição.
Nas duas últimas décadas tivemos apenas 2 clubes disputando as finais da competição que não vieram das 4 maiores ligas. São justamente as décadas onde os efeitos da Lei Bosman foram mais sentidos, pois como teve início em 1996, levou algum tempo até que impactasse os clubes, com contratações e montagens de elencos estelares, que significam maior chance de sucesso esportivo, maior atenção da mídia e isso traz mais dinheiro.
Esta concentração de performance está de certa forma associada à concentração financeira, oriunda de aspectos como aumento dos valores de direitos de TV (Inglaterra), construção de marca global, modelos desequilibrados de negociação de TV (caso espanhol pré-2015, quando os clubes negociavam separadamente seus direitos e Barcelona e Real Madrid recebiam m=bem acima dos demais), e gestão eficiente de elencos.
Falemos então de concentração financeira nas ligas. Nos gráficos abaixo temos dois movimentos: no primeiro teremos a evolução da receita anual consolidada de todas as ligas europeias e a divisão entre as Top 5 ligas e as demais. No segundo gráfico teremos a evolução anual dessas duas divisões e a evolução consolidada.
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Note que há, de fato, aumento de concentração de receitas nas principais ligas, passando de 69% das receitas para 75% em 10 anos, e isso num ambiente onde as receitas consolidadas cresceram 80%. Mas quando observamos o gráfico 2, note que um dos problemas das ligas “menores” está na volatilidade das receitas, pois parte delas vem da venda de atletas, justamente para as ligas maiores, numa espécie de “transferência de renda” entre ligas. Naturalmente, este comportamento mais errático das receitas é também um problema na relação com as ligas mais fortes. Mas isso não tem relação direta com o Fair Play Financeiro, e está mais relacionado à força econômica dos países, sua tradição no futebol, e aos efeitos da criação de super times que às regras de controle das finanças.
E no Brasil?
Sempre faço esta pergunta, porque no fundo é o que nos importa. Aqui também já há concentração. Desde a criação do Campeonato Brasileiro por pontos corridos em 2003, tivemos 7 campeões em 17 anos, sendo que temos apenas o Santos como campeão único, com os demais tendo ao menos 2 títulos no período. Desses, em 11 anos os campeões foram uma das 4 maiores receitas do país (Flamengo, Palmeiras, São Paulo e Corinthians), ou 65% das vezes.
O Fair Play Financeiro não acentuará essa concentração, ainda que num primeiro momento possa ocorrer o mesmo efeito que vimos no triênio 2006/2009 com o São Paulo tricampeão. O problema é que a falta de controle externo e a má gestão geram enorme volatilidade de desempenho, pois muitas vezes os bons anos esportivos estão associados a péssimos anos financeiros, gerando perda de competitividade no ano seguinte. Veja o quadro de desempenho dos 4 clubes brasileiros citados acima.
Em 2012 e 2013 tivemos o pior desempenho dos 4, mas desde então os clubes tem evoluído, e nas últimas 4 temporadas ao menos 3 deles está nas primeiras colocações. Mesmo no período mais curto, tivemos por 8 vezes esses clubes campeões, sendo que foram nos últimos 5 anos, e um foi vice em 2014. Isso, sem Fair Play Financeiro. Ou seja, o histórico e a tendência são claros.
Para democratizar as conquistas existem as copas. Veja no quadro abaixo que na maioria dos países e períodos analisados há mais vencedores de copas que de campeonatos nacionais. É um caminho.
No fundo, responsabilizar o Fair Play Financeiro pela concentração é frágil, assim como negar que houve concentração também é. Mas é preciso entender as razões e combatê-las, ou melhor, incentivar suas práticas. Talvez aqui esteja a grande questão sobre este tema: a visão é sempre a de destruir quem alcançou o melhor desempenho, a melhor estrutura, mais conquistas, e não a de utilizar exemplos e modelos para alçar à condição de competição aqueles clubes que ficaram pelo caminho por conta da adoção de práticas ultrapassadas de gestão.
Ao mesmo tempo, “o rio corre para o mar”. Exceto por ações como as vistas com Manchester City e PSG, onde o dinheiro praticamente criou equipes competitivas (tirando espaço de clubes que se organizam sozinhos como Tottenham e Lyon), geralmente o que teremos são clubes com mais torcida, exposição e consequentemente mais dinheiro, ocupando as primeiras colocações das competições. E é assim há muito tempo. Não se trata de defender, mas de constatar a realidade. Conhecê-la permite trabalhar para muda-la.
Equilibrar esses pratos não é tarefa fácil, mas é possível. A aplicação do Fair Play Financeiro ajuda nesse sentido ao manter os clubes saudáveis financeiramente, possibilitando trabalhar seus potenciais. Vale para a Europa e para o Brasil. Se o patamar mudou, então quem quiser competir precisa se organizar para não se transformar num clube cheio de história, mas cujos pôsteres de campeão estão amarelados na parede.
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